Clarice Lispector
Há tempo não leio algo com tamanha profundidade, deve ser a maturidade do momento. Porém, identifiquei e passei a pertencer mais a mim mesmo e ás palavras de Clarice. E no mais, volto a caminhar "...no deserto mesmo que caminho!"
Carneiro
Um amigo meu, médico,
assegurou-me que desde o berço a criança sente o ambiente, a criança quer: nela
o ser humano, no berço mesmo, já começou.
Tenho certeza de que
no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não
importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a
ninguém. Nasci de graça.
Se no berço experimentei esta fome
humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino.
A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira:
ela pertence a Deus.
Exatamente porque é tão forte em mim
a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho
medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre.
Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso.
Com o tempo, sobretudo os últimos
anos, perde o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda
nova de “solidão de não pertencer” começou a me invadir como hera num muro.
Se meu desejo mais antigo é o de
pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações? Porque
não é isso que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não posso, é, por
exemplo, que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo
que eu pertenço. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma
alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo
embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos – e não ter a quem dizer:
tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma
espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, raramente embrulho com papel
de presente meus sentimentos.
Pertencer não vem apenas de ser
fraca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a vontade
intensa de pertencer vem em mim de minha própria força – eu quero pertencer
para que minha força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa.
Quase consigo me visualizar no
berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e, no entanto, premente sensação de
precisar pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar,
eu nasci e fiquei apenas: nascida.
No entanto fui preparada para ser
dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma
superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma
mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança.
Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me
para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas
trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me
perdoaram por eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança.
Mas, eu não me
perdôo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e
curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha mãe. Eu
nem podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não pertencer porque,
como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha não podia ser
conhecido.
A vida me fez de vez em quando
pertencer, como se fosse para me dar4 a medida do que eu perco não pertencendo.
E então eu soube: pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no
deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede
volta e é no deserto mesmo que caminho!
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