quarta-feira, 16 de março de 2011

HISTÓRIA DE AMOR

Manuel Carlos
 Do Livro: A Arte de Reviver

     Quando li esta crônica no livro do Maneco, achei sinistro “o amigo Rogério”: a própria encarnação da inveja, pensei, porém fui obrigado a concordar com ele. Rogério se mostrou no fim da crônica, “que estava certo, pelo menos neste caso”.
     Enfim, eis o poder da narrativa e mais uma bela história de amor que foge das comuns histórias lineares de amor.


    
     Cecília e Horácio eram meus vizinhos. Casados há 22 anos, sem filhos, viviam abraçadinhos, aos beijos, sempre de mãos dadas quando desciam no elevador ou andavam pelas ruas do Leblon. Um dia meu amigo Rogério fez um comentário sobre o casal:
     __ Não gosto deles. São felizes demais! Seguros demais! Chamo isso de má felicidade. A boa é a que está sempre por um fio, ameaçando romper-se a cada instante.
     E continuou, apesar da minha surpresa:
     __ Os casais excessivamente felizes são egoístas, só vivendo para aquela felicidade que ostentem de maneira quase ofensiva, como quem diz: “É uma pena que vocês não sejam felizes como nós, mas danem-se!”
     Ele não falou exatamente danem-se. Usou uma expressão chula, que  eu não ouso colocar nesta página e, se ousasse, a revista* a suprimiria com toda a razão.
     __ Os felizes, dessa felicidade pétrea e inabalável, são sempre cureis e intolerantes, acrescentou ele. Julgam-se superiores. E não apenas os felizes no amor. Mas em tudo. A felicidade excessiva compromete o caráter. Por exemplo: uma pessoa realizada, de bem com a vida, não dá esmola. Pode reparar: só pobre dá esmola. É uma espécie de solidariedade, como quem diz: é melhor eu colaborar, que amanhã posso estar também na pior. Já o sujeito feliz passa batido, culpa o governo pela mendicância e acha que se der esmola, está usurpando o papel do Estado. Esta é uma tese defendida, inclusive, por Bernard Shaw.
     Na mesma hora me lembrei de Nietzche (perdoem-me o inevitável pedantismo), quando através de Zaratustra afirma: “Eu não dou esmolas. Não seu bastante pobre para isso”. Lembrei, mas calei, pois não queria dar uma dimensão filosófica à tese do meu amigo, o que acabaria por valorizá-la.
     Numa outra ocasião, tomávamos um chope quando o casal feliz passou, acenando e arrulhando como dois pombinhos. Rogério voltou à sua tese:

__ Como vê , eles não tiveram filhos. Vinte e dois anos de casados e sem filhos! Por quê? Porque são felizes demais e filhos são concorrentes, atrapalham. Marido e mulher sempre brigam, culpam um ao outro pelos defeitos dos filhos, seja na educação, na alimentação, no desempenho escolar ou na escolha dos amigos... Um sempre culpando o outro. Sem contar que quando são crianças invadem o quarto do casal, impedindo a plena e total intimidade, que é dormir pelado, usar o banheiro com a porta aberta e não ter lugar certo para fazer amor!


     Uma noite, chegando no edifício, encontrei uma ambulância que saía de sirene ligada. O porteiro entregou:
     __ D. Cecília, do 302, teve um treco aí, caiu dura. O marido levou pro hospital.
     Ao amanhecer eu e o edifício todo já sabíamos: Cecília tivera um derrame, fora socorrida com rapidez, mas... morrera durante a madrugada. Um baque para todos nós, amáveis e sorridentes vizinhos.
     Enterro, missa de sétimo dia, tristeza. Horácio mudou-se menos de um mês depois. Nos perdemos de vista, mas dois anos depois, na festa de lançamento da minha novela Mulheres Apaixonadas, no Copacabana Palace, ele apareceu, convidado não sei de quem, e me apresentou a nova mulher, Mila, uma moça miúda e charmosa, de no máximo 25 anos. Não estranhei. Acho natural que os viúvos voltem a se casar, seja o homem ou seja a mulher. E Horácio se abriu:
     __ Experimento agora uma felicidade diferente, mas não menor. Com a Cecília era amor e paz. Com a Mila é amor e também um pouco de suspense, de insegurança. Antes o mundo todo me era indiferente. Era tão feliz que não precisava de ninguém. Agora tudo mudou. Temos dois meninos, gêmeos, que estão com um ano, mas ainda vamos tentar uma menina, que é o sonho de Mila.
     Fiquei com vontade de indagar se a falecida Cecília era estéril ou se eles não quiseram ter filhos. Desejava que a primeira opção estivesse certa, pois assim sepultaria a tese de Rogério. Mas não tive coragem de perguntar. Ao nos despedirmos na festa, comentei com Mila.
     __ O Horácio me disse que vocês vão tentar uma menina.
     __ Claro. E enquanto não vier uma, vamos continuar tentando. Ele e a primeira mulher nunca quiseram ter filhos, sei lá por que, mas, pra mim, casamento sem filhos não esta com nada.
     Pronto. Era a informação que estava faltando. Horácio e  Cecília, apesar de férteis e felizes, nunca quiseram ter filhos. Era a má felicidade, que eu nunca pensei que pudesse existir. O Rogério estava certo, pelo menos nesse caso. Que pena!

* Esta crônica foi publicada na revista Veja Rio em 14 de agosto de 2005.

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